AUTO DA GAMELA de ESECHIAS ARÁUJO LIMA E CARLOS JEHOVHA

AUTO DA GAMELA


AUTORES: ESECHIAS ARÁUJO LIMA E CARLOS JEHOVHA

CENÁRIO: paisagem da seca nordestina – sol vermelho, espinhos de quiabento, cabra, cacimba, cabritos, homem com embornal, mulheres de lenço a avental, jegue, meninos de pés sujos.


NARRADOR: O auto da Gamela em uma obra regional e tem conteúdo sócio-econômico estritamente nordestino. Tem a forma de um poema e conta a história do nascimento da criança da mulher da caatinga: como nasce, padece e morre o filho do sertanejo.

Filho que nasce na gamela. Gamela ESTA que é para o catingueiro tem "mil e uma utilidades".

É gamela para lavar os pés antes de deitar; gamela para lavar o corpo depois de um dia de trabalho; Gamela para lavar roupas; gamela para lavar uma mulher depois do parto, gamela para lavar defuntos, gamela para dar de comer os porcos.

Pode ser de umburana, de cedro, de ipê, de gameleira, pode ser grande ou pequena.

Este auto mostra com realismo o sofrimento do homem do sertão em sua função na terra, que, às vezes, é estéril, quando o sol martiriza o chão. Outras vezes a terra é amena, quando o inverno chega e o verde brota por todos os lados. Ai o homem da caatinga sente-se feliz e lembra das cantorias do nordeste.


1º ato:

PERSONAGEM 1: HOMEM DO SERTÃO – ENTRA E DIZ:

Há, no céu desta terra,

Um doce mistério de estrelas suadas...

Há, na terra torrada,

Fiapos de chamas incolores!

Há, nos campos,

Uma sede incontida de verde.

Há, nas cacimbas desta serras,

Animais quietos e indolentes.


Há, no ventre quente,

Um lamento triste de estalos secos.

Há, nas faces sulcadas,

A sombra amarela da subnutrição.

Há, em cada barriga,

O ronco teimoso da fome.

Há, nas varandas dos ranchos,

Crianças de buchos crescidos

E pais impotentes e passivos.

Há homens sem nomes...


HOMEM 2:


Cavo as veias no chão seco da caatinga,

Crivado de mil lascas de raios de sol.

Vejo lábios quebrados de ais e suplícios,

Grávidos de gemidos e pálidos de tristezas.


MULHER 1:

Vivo triste de ouvir os aborreços do povo,

Nos dias de consumiço pelas bandas do sertão.

Há vozes de enxadeiros e lágrimas de sangue,

Mil braços em luta pela herança da terra.


MULHER 2:

Trago, nos lábios, profecias de retirantes

E planto, no chão bravio, a parábola dos grãos.

Ouço a sinfonia das enxadas nos anos de chuva,

Os sinos do céu soando na voz dos trovões.


POVO:


Pai, que olha a terra e o céu,

Olhai as terras secas da caatinga,

Os dias de fome e de desgraças,

E os olhos gotejando lágrimas,

Pelo chão seco dos catingais.


Pai, que olha a terra e o céu,

Olhai os olhos dos benzedeiros,

Olhai a fome dos camponeses,

Olhai as mãos machucadas pelo cabo da enxada,

Olhai os passos sofridos deste povo que chora.


MULHER SERTANEJA GRÁVIDA:

Bendito seja o fruto do ventre da terra

E o suor que goteja no casco do chão.

Apressai, Príncipe da Luz e da Justiça,

Com as cangalhas de pão e de esperança!

POVO:


Alegrai, mãos magras de enxadeiros,

Nos dias de briganças e lamentações!

Alegrai, posseiros humildes da lavoura

Com as notícias agrárias do país!

Alegrai escravos dos latifúndios,

Alegrai camponeses famintos da caatinga!


HOMEM 1:


Lá...

Nas paragens,

Muge uma vaca triste,

Os cabritos estripulentos

Esparramam a preguiça nos peito das mães.

Geme...

Na curva distante

Um carro de boi sonolento,

Como se ainda houvera despertado.



Sou sertanejo

A fé de aço me move,

Cedo salto da cama,

Jogo no ombro a enxada e a foice,

Pois comida a minha fome não vê.

Foi para a labuta do sertão!

Minhas mãos alisam o cabo da enxada,

Como se esposa minha fosse.

Meu facão corta os galhos de quiabento,

E meu suor e me cansaso

Guardo na esperança de meu ser.





PROFICEIRA:



A natureza – a profetisa não erra,

Me disse que breve vem chuva pra terra

E por isso eu já posso plantar.



Ai vem a chuva pra engordar este pedaço de chão.

Sertanejo! Veja o tempo e o vento,

Que a chuva saiu das entranhas do mar

E vem pelos ares, pra cair aqui no sertão.



ORAÇÃO DA MÃE GRÁVIDA:



Quero u´a mão que levante os fracos,

Que traga esperança de vida aos famintos.



Quero u´a mão que sirva de estrada,

Que indique o caminho do amor e da paz.



Quero u´a mão que proteja uma criança,

Que aponte os braços que embalam a paz.



Quero u ´a mão que construa uma escola,

Que derrube os cárceres e abra um caminho.



Quero u´ a mão que abençoe o trabalho,

Que preste conta do suor do camponês.



Quero u´a mão que rasgue o silêncio,

Que anime os oprimidos e acorde os heróis.



DOIS ANJOS:



Anjo 1: Alegrai homens da terra,

Nasceu, na caatinga, mais um braço para o trabalho.



Anjo 2: Alegrai homens da terra,

Pelo fruto do suor, da fome e do cansaço,

Gerado no ventre da mulher curtida de sol,

De poeira, de vento, da paisagem agreste do sertão.



Anjo 1: Alegrai homens da terra,

Pelo braço,

Estandarte da enxada e da picareta,

Alimentado de farinha e rapadura,

Gerado no ventre Natural,

Onde o conforto dobrou caminho

E passou distante.



Anjo 2: Alegrai homens da terra,

Pelos aboios

Que irão nascer desta criança,

No pastoreio das cabras,

Por montes e tabuleiros,

Pelo sertanejo forte,

Que está dentro dele.



NASCIMENTO DA CRIANÇA DENTRO DA GAMELA:



MULHER 1:



Nasce na gamela

O Messias do sertão!

Na manjedoura pobre

Nas camas de vara,

Debaixo do teto

Furado de palha

Vergado ao peso da fome

E do desamparo!





MULHER 2:



Nasce o rebento do sertão!

Só, simples e desamparado,

Numa gamela feita de pau,

De troncos mortos!



NUMA GAMELA! NUMA GAMELA! NUMA GAMELA!



MÃE CATINGUEIRA JUNTO COM UMA APARADEIRA:



Eu sonhei, meu filho,

Um sonho sonhado!

Que te arrebataram das minhas mãos magras

E te colocaram num berço de marfim,

E teus trapos,

Atirados ao vento,

Eram bandeira de uma raça massacrada.



Eu sonhei, meu filho!

Um sonho sonhado.

Que te arrebataram de mim

E te levaram para outro mundo,

Que não tinha sofrença,

Que em vez de enxada

Te deram uma caneta,

E em vez de trapos

Te deram uma toga.





OFERENDA DO POVO:



MULHER 1:

Eu te ofereço mil taliscas de esperança,

O adjutório nas indagações da vida!



HOMEM 1:

Eu te ofereço a terra seca e batida de sol,

A fartança de miséria e de desgraça.



MULHER 2:

Eu te dou as lágrimas das mães infelizes

E o berreiro de mil crianças famintas.



HOMEM 2:

Eu te dou os olhos tristes dos andarilhos

E o ventre magro das mulheres grávidas.



HOMEM 3:

Eu te dou os talhos da enxada e os raios de sol

Os catingais prenhes de cactos de espinhos.



MULHER 3:

Te dou o salário dos herdeiros da miséria

E a descoberta da razão e injustiças.



TODOS JUNTOS:



TE oferecemos:

os lábios lascados pelo sol,

Os braços para trabalharem a meia,

As cruzes do sertão,

A desgraceira da caatinga,

A falação dos políticos e dos grileiros,

O suor e a inhaca do trabalho,

E sete palmos debaixo da terra.





TRÊS REIS MAGOS:



REI 1: Trago espigas de ouro das lavouras do céu,

E a esperança dos desvalidos da caatinga.

Eu te trago, meu filho,

A enxada velha,

Embora cega, morde o chão

Renitente e ossudo e engravida o milho.



REI 2: Planto esperança nos lábios dos famintos,

Vivo no ofício de abençoar as veias da terra.

Eu te trago a foice

É ligeira e afiada,

Ela ceifa espinhos,

Poda quiabento

E até mato ralo.



REI 3: Abraço os peregrinos tristes das estradas,

Nos dias de enterro e de lágrimas de dor.

Eu te trago a um facão

Tão bem amolado

Que esteve na cintura

Em festas e busões

Que tiniu

Feito sino,

Contra outros facões

Nas brigas sem juiz.



CANTIGA DAS PROFICEIRAS:



Eu te trago o meu regaço,

Onde hás de curtir o cansaço

Dos dias e dias de sol.

Eu te trago uma rapadura,

Que representa a fartura,

Pra sempre te alimentar.



Eu te trago a farinha,

Da qual te farei papinha.

Eu te trago a gamela

Que além de nasceres nela,

Nela hás de te lavar,

Quando voltares suarento,

De poeira, sol e vento,

Teu cansaço acabará.



MULHER APARADEIRA:



Ide buscar os homens

Que conhecem os segredos

Das plantas misteriosas

Pois o mal de Francisco

É grande!



Vinde benzedeiros,

Médicos divinos da caatinga,

Salve este menino do mau-olhado,

Do quebranto e da doença.



Vinde, vinde benzedeiros,

Tragam ramos de alecrim,

Arruda, alfavaca

E fedegoso.



LAMENTO DA MÃE:



Já pari onze filhos,

Perdi sete...

Por falta de remédios,

Comida e agasalho.

Não basta sofrer com a seca,

A fome e a miséria,

Tenho sentir a dor

Da ida deste anjo?



AS INCELENÇAS E OS LACRIMEJOS NO VELÓRIO DA CRIANÇA



MULHERES:



Lá no céu desceu

Um casaulinho de pomba,

batendo as asas,

Pra não fazer sombra.



Café bem quente

E bem ligeiro,

Não tem cachaça

E nem dinheiro.



Um passarinzim

Bateu asas e fez assim.

Lá no céu tem festa hoje

Na chegada de um anjim...



LAMENTO DA MÃE:



Meu fio se foi tão cedo...

Nem bem abriu os ôio pra vida...

E já na trilha do sol

Buscou a mansão do senhô!



Não chegou a vestir calças,

Não calçou sandáia,

Não deu cambaiota,

Não nadou na água barrenta do rio,

Não brincô, não pulô

Não provô do umbuzeiro,

Não viu o sol e nem a lua.



Meu fio se foi tão cedo!





CONSOLO DA APARIDEIRA:



Não chore, comadre!

Não vê sua lágrima pesa na asa do anjo?

Assim ele não pode voar...



MÃE:



Meu passinho verde,

É hora...

Meu passinho verde...

É hora...

Despede de seu ai e de sua mãe

E vá s´imbora!



HOMEM 1: (SERTANEJO)



LOUVAÇÃO À GAMELA



Se entrares na sala e olhares prum canto,

encostada na parede,

lá está a gamela.

e a noite,

antes de jogar sobre o catre

a dor de um corpo cansado e suado

de um dia carpindo,

eu viro o cansaço ao avesso,

num banho de asseio,

e lavo os meus pés.



Se fores no quarto,

Lá a gamela está.

Banha lindas donzelas,

Entranha de mães com o filho a nascer.



Se fores a cozinha e espiares num canto,

Lá está a gamela, à beira de um pote,

Encostada, calada, testemunhando a labuta,

Lavando pratos de barro, panelas encardidas.

E até serve para dá comidas aos porcos,

Lava pernas inchadas e doidas,

Crianças com diarréias,

Lista negra da morte!



Onde quer que fores,

Hás de ver a gamela!

Em dia de feira, na missa

Como bastimal,

No velório pra lavar defunto,

Lavou e sempre lavará.



Louvo a gamela,

Que esteve comigo a vida toda.

Não viu descanso, mas que teve muita lida:

No fogão, em casa e na fonte,

Na miséria, no desespero e na morte.





MÚSICA DO SERTÃO PARA TERMINAR E TODOS CANTAM





POEMA PARA ENTENDER O SE....


SE... pronome Reflexivo.
Quando penso sobre mim mesma.
Se eu não tivesse nascido,
Se eu  não tivesse casado,
Se não tivesse mudado para a Bahia,
Se meus filhos não existissem!...
Eu seria triste, não seria eu...

Se SE for integrante do verbo,
Terá  parte de um verbo pronominal.
"Todos iriam queixar-se,
Amar-se ou abandonar-se."

Mas  se SE estiver apassivando o sujeito,
Pode-se fazer muitas perguntas:
Se a terra fosse quadrada?
Se os homens tivessem asas?
Se pudéssemos ir a outro planeta?
Se amássemos realmente o próximo?
Se o elefante voasse?
Se ontem pudesse ser sempre hoje?
Mas se o SE for para realce,
Só para você ir-se,
partir-se, rir-se, sorrir-se.

Ir para a lua e observar as estrelas,
Parti para o sonho de felicidade,
Rir da tolice humana...
E sorri de si mesma.
Assim se emprega o SE...

Vera da Mata
VC, 15/07/2008